Chama‑se «cronobiologia» ao ramo da ciência que estuda
a organização temporal dos organismos vivos e dos mecanismos que controlam os
diferentes sistemas vitais e as atividades químicas e elétricas de cada órgão.
Verifica‑se, então, que a organização temporal da vida tem um enorme efeito
sobre as estruturas e as dinâmicas dos seres vivos (e não só). Ou seja, o
tempo, para nós, (que podemos dividir em segundos, minutos, horas, semanas,
meses, estações do ano e anos) não é algo linear.
Peguemos em dois exemplos: um
condutor de automóvel corre um risco maior de ter um acidente de automóvel
entre as 3 e as 4 da manhã numa estrada sem trâfego, do que durante o dia no meio
do caos urbano; as pessoas correm um risco maior de sofrer um ataque
cardíaco entre as 6 e as 9 horas da manhã no inverno do que ao fim do dia no
verão.
A saúde no devido tempo
A percepção que temos do tempo é que é linear (no
sentido do passado para o futuro) e simultaneamente cíclico (a noite e o dia,
as estações do ano que se repetem, etc.).
Na prática, significa que, embora tenhamos a noção de
que seguimos para um tempo que designamos como futuro, há também uma
«repetição» de horas, dias da semana, meses do ano e estações do ano. Assim,
sabemos que o dia tem 24 horas findas as quais segue‑se mais um dia de 24
horas. Da mesma forma sabemos que ao inverno segue‑se a primavera, o verão, o
outono e regressamos ao inverno - ainda que também
saibamos que não são o mesmo inverno mas o inverno do ano seguinte.
Com a cronobiologia, a ciência passou a estudar a
organização temporal dos seres vivos e a sua adaptação. Eles estão sujeitos às
variações cíclicas dos eventos que ocorrem na seta do tempo. Assim como à
noite o nosso corpo responde com a necessidade de dormir, com o alvorecer do
dia, o corpo prepara‑se para acordar e entrar em atividade. Já nos animais de
vida noturna, a situação é inversa.
Esta variação, que não depende tanto do tempo mas mais
das variações ambientais e biológicas que afetam o ser humano, conforme as
horas dos dias ou as estações do ano, é hoje, objeto de atenção crescente por
diversas ciências, em especial as ligadas à saúde.
Com efeito, porque somos um composto complexo de
trocas químicas que decorrem do nosso metabolismo, estamos sujeitos a variações
reativas e à suscetibilidade face a esse mundo oculto dos acontecimentos
biológicos. Sabemos, por exemplo, que a pressão arterial sobe de manhã e desce
à noite - não porque tenha horas marcadas para aparecer mas porque o nosso
organismo assim se fez ao longo de milhões de anos de adaptação ao mundo.
A
importância que devemos dar a estas variações justifica‑se plenamente sob pena
de sacrificarmos o organismo contra a sua natureza, desencadeando distúrbios de diversa ordem. Por exemplo, os
hipertensos estão mais sujeitos a problemas entre as 6 e as 10 horas da manhã,
do que ao fim do dia porque a pressão arterial sobe naturalmente nas primeiras
horas da atividade diurna.
Um outro aspeto a ter em conta é aquilo que ingerimos. Todas as pessoas
conhecem casos de alguém que tem dificuldade em adormecer se tomar cafeína ao
fim da tarde, contrariando a necessidade do sono. Outro exemplo é o efeito do
álcool ao início da madrugada, que afeta os sentidos e o tempo de reação do
cérebro.
Os medicamentos têm também idêntico efeito. Ou seja, as horas a que são
tomados também surtem efeitos mais ou menos acentuados. A chamada
«cronofarmacologia» representa as variações rítmicas dos efeitos dos
medicamentos ao longo do dia (de um lado, temos as horas da sua máxima eficácia
e do outro, aquelas em que a sua toxidade pode aumentar bastante). Por exemplo,
o efeito da aspirina varia conforme a hora em que é tomada. A sua eliminação
pelos rins é mais reduzida quando é ingerida às 19h00 e mais longa quando é
tomada às 7h00 (a diferença é muito grande: cerca de 25%).
Uma vez ocorreu um grave acidente aéreo nos EUA, em que pereceram todos os
passageiros e tripulantes por razões durante muito tempo inexplicáveis, dado
que tanto o avião como as condições atmosféricas, não tinham estado na origem
do acidente. Depois de extensas investigações chegou‑se à conclusão que os
pilotos cometeram graves erros minutos antes do acidente porque os seus
cérebros estavam a funcionar com um adiantamento de 5 horas sobre a hora
efetiva e por isso, não estavam nas melhores condições para tomarem decisões
(tinham dormido muito pouco nas últimas 24 horas tendo atravessado vários
fusos horários).
O estado do nosso organismo varia em
função das horas, dos dias e dos meses. Por exemplo, o nosso corpo «fabrica»
mais cortisol (a hormona do stresse) de manhã, por volta das 8h00 (o que
explica o risco elevado de complicações cardiovasculares nesse período). A
produção de prolactina é mais elevada de noite, quando a secreção do cortisol é
mais fraca (a prolactina é uma hormona produzida numa área do cérebro chamada
«hipófise», que coordena outras glândulas vitais do corpo e está implicada
em aptidões como a memória, o raciocínio e o próprio desempenho da
inteligência).
Compreender os ritmos biológicos
O
tempo sujeita o corpo aos seus caprichos e funciona de acordo com os ritmos. Mas
o que se entende por «ritmos biológicos»? Vejamos com mais pormenor: um ritmo é
uma variação periódica de algo no tempo. O ritmo do coração é um bom exemplo.
Em média e numa situação de repouso, o coração humano bate cerca de 70 vezes
por minuto. Já de noite ou em estado induzido de relaxamento (através da
meditação ou de medicamentos) esse ritmo pode descer até 50 ou menos pulsações
por minuto.
Os
«ritmos biológicos» nos seres vivos (animais e plantas) são genéticos,
hereditários e visam o equilíbrio e a eficiência corporal, a adaptação ao
ambiente, a saúde e a sobrevivência.
Um
ritmo tem várias características, a saber:
Período - é o espaço de tempo entre dois eventos regulares
(por exemplo, as batidas do coração); o período dos ritmos corporais mede‑se
em segundos, minutos, 24 horas, 28 dias, um ano, etc.); o chamado «ritmo
circadiano» é o mais estudado - representa o espaço de tempo de 24 horas em que
ocorre a alternância do dia e da noite; existe também o «ritmo circamensal»
(que dura cerca de 28 dias) e o «ritmo circanual» (que dura cerca de um ano);
Fase - é o ponto mais elevado ou mais baixo de uma
variação; a «acrofase» é a fase mais elevada (ou o pico de uma atividade
corporal) e a «batifase» indica o valor mais baixo de um ritmo;
Amplitude - é a diferença entre os valores mais baixos e mais
altos obtidos durante cada período;
Nível médio do ritmo - dá‑nos a média do
ritmo após várias verificações; esta análise é importante na prática médica,
nomeadamente quanto à administração de medicamentos e as suas dosagens. Alguns
exemplos são suficientemente esclarecedores.
O nosso «relógio biológico» é
controlado por uma estrutura nervosa cerebral - o chamado núcleo
supraquiasmático, localizado no hipotálamo anterior - que assinala todas as
funções do organismo, ditando os ritmos relacionados com a duração do dia
(níveis de luz), da temperatura corporal, etc.
A influência dos ritmos biológicos nos processos químicos do organismo
talvez seja a maior prova de como nós estamos profundamente mergulhados nos
diferentes campos de energia que compõem a vida e como estamos em interação
constante com o ambiente terreste.
Os ritmos biológicos incidem sobre a dinâmica da vida, incluindo a forma
como o corpo e os nossos comportamentos reagem a estímulos «influenciados»
pelo momento temporal. Esta organização cronológica do organismo atingiu,
efetivamente, um grau de complexidade impressionante, de tal forma que ignorar
ou lutar contra ela pode ser altamente perigoso.
A grande contribuição do estudo da cronobiologia é a de fornecer diretrizes
da forma como o nosso organismo se comporta em determinados períodos. Por
exemplo, o chamado ritmo circadiano é um dos mais importantes, pois estende‑se
por 24 horas. Nesse período de tempo, ocorrem múltiplos eventos no corpo, que
são mais ou menos ativos, conforme as horas. O ritmo do sono é o mais
conhecido.
O estudo dos mecanismos dos marcadores de tempo na intimidade dos
organismos, ou «sistemas de temporização», permite‑nos também compreender como
somos sistemas abertos, sujeitos a grandes oscilações, o que nos afasta
bastante de uma visão mecanicista do corpo, cuja eficiência é a mesma em qualquer
momento.
É óbvio que os ritmos biológicos variam de pessoa para pessoa. Deparamos
então com os «cronotipos» que são determinados geneticamente. Por exemplo,
existem as pessoas matutinas, que funcionam melhor de manhã e as vespertinas
que atingem o seu ponto mais alto ao entardecer. Este grupo é o mais
predominante, abrangendo cerca de 80% da população. Por isso as manhãs são
geralmente menos produtivas do que as tardes, não tanto por serem mais curtas,
mas porque o ritmo biológico dessas pessoas está orientado nesse
sentido.
Os outros ritmos e funções corporais são menos dados a
alterações. As variações da temperatura, da pressão arterial e das muitas
outras atividades eletroquímicas do organismo, obedecem a um ritmo semelhante
em todas as pessoas, sejam matutinas ou vespertinas.
O equilíbrio biológico na saúde
Com o desenvolvimento da sociedade industrial e a
ampliação do tempo em atividade, os seres humanos passaram a andar, em geral,
descoordenados do seu relógio biológico. E então, temos atualmente uma
sociedade ensonada e cansada na maior parte dos dias. Viajamos de noite,
divertimo‑nos de noite, dormimos de dia, trocamos as horas de alimentação e
sofremos de jet‑lag (descompensação horária originando uma
extrema fadiga decorrente de alterações no ritmo circadiano). Com isto
estamos, muitas vezes, a submeter o nosso organismo a um stresse tal, que pode
colocar a nossa vida em perigo.
Como já vimos, cada sistema do nosso organismo tem o
seu ritmo biológico. Num organismo saudável, o conjunto de ritmos estão coordenados,
o que permite que o corpo responda com eficácia a todas as variações
ambientais. Uma boa noite de sono é reparadora e permite um desempenho diário
mais elevado do que uma noite em que dormimos pouco. Mesmo tentando repor o
sono dormindo durante o dia, a recuperação nunca é total porque o sono diurno é
diferente do sono noturno.
Os efeitos cognitivos do ritmo biológico são também
notáveis. Por exemplo, a eficácia da concentração e da memória não dependem
apenas da motivação e do empenho, mas também das horas do dia. É depois das
10h00 que a aprendizagem é mais fácil. À tarde funciona melhor a memória de
longo prazo. Em alguns sujeitos, o estudo é mais produtivo por volta das 20h00.
De facto, a concentração aumenta lentamente ao longo do dia e diminui
depois das 21h00, atingindo o seu ponto mais baixo entre as 3h00 e as 5h00 - precisamente o período em que, comparativamente ao que se passa de dia, há
uma maior probabilidade de acidentes rodoviários.
Também sabemos que a concentração no sangue de várias hormonas como o
cortisol, a testosterona, a adrenalina e a noradrenalina é menor precisamente
nos picos de fadiga.
Por sua vez, a ingestão de tranquilizantes ou de estimulantes conforme a
hora do dia em que se tomam, vai também alterar o ritmo biológico do cérebro e
os efeitos dos químicos ingeridos. Há situações em que ficamos próximos da
toxidade máxima correndo perigo de vida sem darmos conta. Será necessária uma
educação médica sobre a matéria, para que se consiga obter a melhor conjugação
entre a ingestão de alimentos e de medicamentos e as horas de recetividade
ideal do organismo.
Concluindo, a toda a hora o nosso metabolismo apresenta uma dinâmica de
acordo com o relógio da vida. Não há ainda aparelhos que permitam dizer‑nos com
exatidão quais as horas do dia, do mês e do ano em que estamos mais aptos a
lidar com os diferentes componentes da vida.
Embora saibamos que o inverno «mata» mais do que o verão ou que o álcool de
manhã é mais tóxico para o organismo do que de madrugada (embora de noite
tenha consequências mais perigosas no cérebro ao reduzir a capacidade de
reflexos), o resto é ainda uma grande incógnita, e tanto mais que cada pessoa
tem caraterísticas únicas.
Nelson S. Lima